Mário Soares foi uma figura muito
mais controversa do que os obituários destes últimos dias deixam antever. E
ainda bem que o foi: um político que não gere polémica falha a missão. Todos os
verdadeiros estadistas, a seu tempo, souberam agitar e dividir águas. Não
recearam a confrontação, não temeram ser criticados em manchetes ou editoriais
na imprensa.
Soares foi assim. Acertou e errou,
mas sempre em função de convicções profundas que soube transformar em
princípios políticos e fazer deles uma linha de rumo. Esteve certo no essencial
quando combateu na primeira linha da edificação do regime democrático e na
nossa integração europeia. Distanciando-se daqueles que sonhavam com novas
ditaduras e com uma alegada “vocação terceiro-mundista” de Portugal,
nomeadamente os dirigentes do PCP.
Dono de uma das expressões mais
emblemáticas de toda a nossa Democracia, “ …pôr o Socialismo na Gaveta”, Mário
Soares soube assumir que ideias e métodos baseados nas palavras como mercado,
concorrência, produtividade e prosperidade eram essenciais em determinada
altura. Assumiu a necessidade de adotar, parcialmente, o capitalismo na sua
versão moderada e abrangente, o que não abdicava, portanto, de instrumentos
reguladores que garantissem ao Estado os mecanismos essenciais para garantir a
justa distribuição da riqueza que o seu socialismo defendia. Suficientemente
aberto e plural em termos políticos, Mário Soares permitiu que na sua ação
política e governação, coexistissem modelos ideológicos distintos, sempre tendo
como prioridade o interesse nacional.
Acreditava na política com ética e
valores tendo dado um grande exemplo disso mesmo, na qualidade de Presidente da
República, no ano de 1987, quando Cavaco Silva era Primeiro Ministro de
Portugal.
Aníbal Cavaco Silva liderava um
governo de minoria, sendo que no parlamento o PS liderado por Vítor Constâncio,
o PCP liderado por Álvaro Cunhal e o então PRD liderado por Hermínio Martinho, tinham
maioria parlamentar. Estes três partidos, aprovaram uma moção de censura,
proposta pelo PRD, que fez cair o governo de Cavaco Silva.
Desejando formar governo com base na
maioria parlamentar, PS e PRD não contavam, no entanto, com a postura gigante
do Presidente da República Mário Soares.
Soares deu a todos uma verdadeira
lição de democracia e de respeito pelo voto do povo, não aceitando a proposta
do PS e PRD para formarem um governo de maioria parlamentar, tendo como base na
sua decisão o facto dos cabeças de lista desses partidos não terem ganho as
eleições em 1985.
Mário Soares dissolveu o parlamento e
marcou novas eleições legislativas para julho de 1987. Cavaco Silva acabaria
por obter a sua primeira maioria absoluta e para a história fica a ética, os
princípios e acima de tudo o respeito que Mário Soares demonstrou pelos
portugueses e pelas suas escolhas.
Talvez por isso Mário Soares nunca
tenha comentado publicamente a opção de António Costa quando este optou pela
constituição da geringonça em 2015, opção que Soares havia contrariado em 1987
e que provavelmente rejeitaria com base na sua ética, valores e respeito pelos
portugueses.
Mário Soares era dotado de um carisma
notável, que o transformou num líder vocacionado para seduzir multidões e
mobilizar vontades coletivas através da palavra, do gesto e do seu exemplo. Foi
alguém que suscitava respeito, confiança e até, para alguns, adoração.
Foi a par de Francisco Sá Carneiro e
de Álvaro Cunhal uma das personalidades que mais marcou a História da política
portuguesa da segunda metade do século XX. Ao contrário de muitos socialistas
que tratam mal a memória de Sá Carneiro, julgo que devemos a Soares uma
homenagem pela forma como sempre se empenhou na luta pela liberdade e pela
democracia.
Se pudéssemos definir Mário Soares numa
citação talvez fosse a famosa frase de Benjamin Franklin: "Aqueles que abrem mão da
liberdade essencial por um pouco de segurança temporária, não merecem nem
liberdade nem segurança".
Soares pode constituir um exemplo no
desassombro que sempre revelou na defesa dos princípios em que acreditava.
Preferia navegar em águas turbulentas do que boiar em águas estagnadas.
Infelizmente deixou poucos seguidores. O calculismo, a dissimulação e a falta
de ousadia são hoje alguns dos mais preocupantes sinais exteriores da política
portuguesa. Soares não era adepto de tais fraquezas. Soares foi um bom exemplo.