Deparámo-nos ontem com o choque de mais um hediondo e
desumano ataque a homens, mulheres e crianças que comemoravam em família e de
forma pacífica, a festa nacional francesa. A França celebrava a tomada da
Bastilha, ocorrida no dia 14 de julho de 1789, aquando do início da sublevação
popular e da Revolução Francesa. Foi, infelizmente, mais um ato bárbaro, desumano,
selvagem, reflexo da carência absoluta de valores e da incivilidade com a qual todos
nós temos de lidar. Uma realidade, nem sempre percetível, por vezes distante, à
distância dos 5000 km que nos separam da Síria, mas que ontem, lamentavelmente,
voltou a entrar por nossa casa adentro. Uma realidade nua e crua que reduziu a
vida de 84 inocentes a nada e cujo significado importa desvendar.
Hoje, ao ler o Artigo do Observador, assinado por Rui
Ramos, intitulado“ Esta Europa pode acabar em Nice”,
estremeci com o visível equivoco. O autor coloca a tónica no facto da Europa
albergar hoje ”grandes comunidades
imigrantes em crescimento descontrolado, e onde demasiada gente rejeita os
valores ocidentais.” Erro! O problema não é esse. O problema é mais
profundo, está dentro da sociedade europeia e intimamente ligado à inoperância
dos políticos europeus, à falta de solidez política da Europa, às ingerências geopolíticas ocidentais por
todo o Mundo, com o fomentar da instabilidade política e religiosa e,
consequentemente, da guerra, fenómeno que está na origem dos grandes êxodos migratórios
que batem hoje à porta da Europa.
Mas porquê? Qual foi o resultado da primavera
árabe? O que é que derivou da destruiu do Estado Líbio? Tinha a Europa interesse
em criar um antro de terrorismo no norte de África? Quem é que fragilizou o Bashar
Hafez al-Assad, armando grupos de jihadistas sunitas, potenciando o crescimento
do “Estado Islâmico” e levando ao extermínio
das populações minoritárias como a xiita, alauita e cristã? Quem é que originou
a vaga migratória síria que se atira ao mar para vir morrer nas praias da
Itália e da Grécia? Seja como for, os agentes terroristas que atuam na Europa
têm sido, na sua grande maioria, europeus de segunda e terceira geração, portanto,
gente que se esperava, à partida, estar integrada há muito.
Rui Ramos e muitos outros estão enganados. Não são os
emigrantes que a Europa e os EUA geram, a verdadeira ameaça aos “padrões atuais de liberdade, tolerância e
pluralismo” europeus nem será a tragédia de Nice que levará ao fim da
Europa. Espero, pelo contrário não estar perante um fenómeno de autoflagelação.
Na realidade, este episódio e tantos outros, que têm ocorrido nos últimos anos
na Europa ou à sua “porta”, são reflexo de uma crise profunda de princípios e
valores que afeta o projeto da construção europeia e que coloca em causa os seus
alicerces políticos, culturais e sociais. Numa Europa minada pela falta de
solidariedade, o lema da Revolução
Francesa da liberdade, da igualdade e da fraternidade não passa hoje de uma
bandeira esquecida e sem significado para muitos responsáveis políticos e para
uma significativa franja da população virada para correntes de estrema direita.
Os resultados eleitorais da Frente Nacional, em França, com 41% nas eleições regionais
ou do Partido da Liberdade, na Áustria, com 48% nas últimas eleições presidenciais
são um sinal importante.
Foi esse o lema que levou à tomada da Bastilha, mas é também
é esse lema e são esses os valores que a França e um pouco por toda a Europa,
se esquecem quando se assiste de forma impávida e serena à morte de milhares de
inocentes nas águas do Mediterrâneo. No entanto, esse esquecimento não é pontual
ou apenas visível à medida que as tragédias se vão somando aqui, em Africa ou
no Médio Oriente. Na realidade estas tragédias são, também, fruto de uma
sociedade europeia doente, que desconhece a verdadeira dimensão de valores como
o da igualdade e da fraternidade e que trata os emigrantes e os estrangeiros
com desrespeito e desdém.
Penso que, na realidade, existe uma verdadeira classe de
rejeitados, de acossados, de discriminados, mentalmente desequilibrados, perdidos, sem valores, na sociedade
europeia, que se começa a insurgir e encontra nas mensagens extremistas de organizações como o “Estado
Islâmico”, o estímulo para desencadear uma verdadeira onda de vingança contra a
sociedade que os humilha. Não será, certamente, de ânimo leve que um
individuo pega num camião de 17 toneladas para atropelar centenas de pessoas
que não conhece. Não se trata, certamente, de um ato surgido do nada, de um
momento para o outro. Mas porquê no dia da festa nacional francesa? Porque não durante
o desorganizado e tumultuoso Europeu de Futebol, terminado há 5 dias,
aproveitando as grandes concentrações de milhares de adeptos vindos de toda a
Europa? É simples, estamos perante o início de uma verdadeira sublevação
assassina de franceses contra franceses, fruto de décadas de discriminação social,
racial, cultural e religiosa. Um drama que apenas aos responsáveis políticos
franceses se poderão imputar responsabilidades, pela ausência de uma política
eficaz de segurança, mas também e a montante, de políticas de integração social
e de uma política educacional que potencie, junto dos jovens franceses, uma
cultura de civismo, tolerância e de respeito pela diferença.
As reações de desportistas, políticos, jornalistas e
artistas franceses contra os portugueses, ocorridas após o Europeu de Futebol não
foram uma simples coincidência nem uma sonora ventosidade de alguma corrente
ligada a movimentos xenófobos. Foi sim, uma ventosidade generalizada que,
apesar de se terem ouvido algumas vozes da civilidade gaulesa, preocupa pela
falta de reparo e censura, das autoridades francesas. Aquilo
que ocorreu em França, com naturalidade, tolerância e sem consequências, com
afirmações como a do “musico” MERZO que atacou a nação portuguesa e deu a
entender que os portugueses só serviam para a construção civil, em Portugal, são
crimes de discriminação racial e ultraje de símbolos nacionais. Ora, estas ocorrências não são sintoma de uma sociedade democraticamente
saudável, mas, antes, sinal de uma sociedade assente numa tensão social e cultural
que espero, a França e todos os franceses a capacidade de corrigir, fazendo,
assim, jus aos valores originais da Revolução Francesa.
"A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes - brilhos do espírito, correntes do entendimento, mistérios e filosofias - que têm o mesmo automatismo que os reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas secreções."
Fernando Pessoa
http://observador.pt/opiniao/esta-europa-pode-acabar-em-nice/